sábado, 20 de maio de 2017

A Genealogia de um Aperto de Mão



Em outubro de 2016 participei do 76º Encontro da Sociedade de Paleontologia de Vertebrados (SVP Meeting), que podemos colocar como a Comic-Con da minha área de atuação (A figura 1 não me deixa mentir). Entre diversas palestras, campos e conversas mais descontraídas, eu acabei me encontrando com Robert Bakker, cujo livro “The Dinosaur Heresies” me colocou no caminho da paleontologia. Tive a chance de conversar com ele, tirar uma foto (Fig. 2) e até ter meu exemplar do Dinosaur Heresies autografado (comprado naquele dia em um dos inúmeros stands que vendiam livros na convenção). Mas também pude trocar um aperto de mão com ele, e a importância desse gesto, embora muito pessoal, só me veio à mente agora no aniversário de falecimento de um dos mais influentes e importantes biólogos que tivemos, e que também está no meu hall particular de influências. Falo de Stephen Jay Gould.

Figura 1: SVP Meeting: também conhecida como o melhor congresso científico.
Figura 2: Eu, Leila e Mr. Bakker, o Herege dos Dinossauros.

Para os que não conhecem ou não sabem de sua importância, Gould, além de ser um grande divulgador científico, também era um evolucionista de mão cheia que, juntamente a Eldredge, propôs o Equilíbrio Pontuado (Gould & Eldredge 1977; Eldredge & Gould 1985) como uma alternativa ao gradualismo que até então imperava no Darwinismo, mas que não conseguia responder por que, em uma sequência de fósseis, na maioria das vezes as formas transicionais não estavam presentes? Darwin, e muitos depois dele, se apoiaram na falha do registro geológico: nem tudo é preservado quando falamos de sistemas deposicionais de milhões de anos e organismos que viviam próximos a eles. As chances de algo morrer e encontrar as condições certas de soterramento rápido e fossildiagênese são baixas. O raciocínio gradualista levou a exercícios de imaginação interessantes e curiosos: suponha que não tenha ocorrido extinção entre o ancestral comum dos chimpanzés e toda a linhagem de hominídeos até o Homo sapiens. Se todos os ancestrais e descendentes se colocassem de mãos dadas veríamos um gradiente muito leve de mudanças quase imperceptíveis de um para o outro e não saberíamos dizer quando uma espécie termina e a outra começa.
O que Gould e Eldredge questionavam : é possível o registro sempre ser falho? Ou será que em alguns casos a evolução ocorre rápido demais? Quando olhamos para fósseis não estaríamos vendo momentos de estabilidade morfológica dentro daquela espécie cujas mudanças que dariam origem a novas espécies operariam de modo rápido em populações periféricas como respostas a mudanças ambientais? Para Gould o conceito de contingência, mudanças grandes como respostas a eventos pontuais, deveria ser considerado na hora de falarmos da evolução das espécies (Gould 2000).
No gradualismo assume-se que mutações vão gerando pequenas variações dentro da população, essas variações vão se fixando a medida que concedem vantagens para os indivíduos para sobreviverem e se reproduzirem (Fig. 2B). Com o passar do tempo os indivíduos mais recentes da população acumularam mudanças suficientes para serem morfologicamente diferentes dos indivíduos mais antigos (BARBARENA 1984). A evolução gradualista é a rampa da escalada do monte improvável de Dawkins (Dawkins 1996).
O Equilíbrio Pontuado, por sua vez, entende a evolução em saltos. As espécies são adaptadas ao seu meio e, portanto morfologicamente estáveis; mutações ainda ocorrem mas a maioria é de caráter neutro, sendo substituições nas bases nucleotídicas que não codificam diferentes sequências de aminoácidos e aquelas que realmente trariam alguma mudança tem baixa ocorrência e quase nunca se manifestam. Em algum momento, no entanto, uma população periférica se isola. Essa população permanecerá em estase morfológica durante muito tempo, até um evento pontuado ocasionar uma mudança rápida - em termos geológicos. Esse evento quase sempre está relacionado a um agente externo, no ambiente, como alterações climáticas ou um desastre natural. O ramo isolado torna-se rapidamente outra espécie. A nova espécie então prossegue de volta ao território antigo e pode coexistir com a espécie ancestral ou substitui-la (Fig 2A). Para Gould esse modelo de especiação era o dominante na evolução, embora não fosse o único (Gould & Eldredge 1977; Gould 1982; Eldredge & Gould 1985).

Figura 2: Diferentes propostas para o surgimento das espécies A-M. Em A o cladograma construido pela teoria do Equilíbrio Pontuado. Em B o mesmo cladograma como visto pela Teoria do Gradualismo (Barbarena, 1984)


A teoria do Equilíbrio Pontuado não foi rapidamente aceita, na verdade biólogos de peso como Dawkins eram contrários ao Equilíbrio Pontuado, especialmente por ele ir contra uma das principais ideias de Darwin, o gradualismo (Dawkins 1986). Para Dawkins, por exemplo, o gradualismo era constante e as migrações criavam as falhas no registro. Outros lançam críticas sobre o fato do Equilíbrio Pontuado ser um resgate da teoria do “monstro promissor” de Goudlschmit (Gould 1977; Smith 1983). Para esses críticos o Equilíbrio Pontuado seria uma espécie de saltacionismo. Uma mutação aleatória na população criaria o indivíduo ancestral em apenas uma geração. Gould gastou boa parte de suas publicações (e.g Wonderfull Life e O Polegar do Panda, bem como Gould, 1982) desmontando a ideia de que o Equilíbrio Pontuado não opera em apenas uma geração, sua escala rápida é a geológica. Uma das principais confusões, no entanto, era entender o Equilíbrio Pontuado como uma espécie de Simpatria ou Parapatria, quando na verdade ele nasceu no contexto da Alopatria de Mayr (Mayr 1954).
Para entender a confusão, e também porque as críticas não fazem sentido, precisamos antes compreender os conceitos de especiação. A primeira coisa a ser deixada clara é: o Equilíbrio Pontuado, como proposto por Gould e Eldredge, não tratava de macroevoluções, ou seja, do surgimento dos taxa de maiores níveis hierárquicos, e sim da microevolução, o surgimento das espécies (Gould 1982). A macroevolução seria uma consequência das espécies que surgiram sobreviverem tempo suficiente para criar um padrão e elas mesmas originarem outras espécies conforme atestado por Lieberman & Eldredge (2014)e pelo próprio Gould (1982) que não via sentido em dividir a evolução em macro e micro. No cladograma abaixo se a espécie A não tivesse originado a espécie A’ ela poderia continuar sendo agrupada no mesmo nível hierárquico taxonômico que B e C (Fig. 3).


Figura 3: No cladograma da esquerda a espécie A não passa por uma cladogênese, logo ainda é inserida na Família ABCidae. NO cladograma da direita uma cladogênese em A faz surgir a espécie A' e um novo nível hierárquico.

Portanto, o surgimento de famílias, classes, ordens, e filos (porque não reinos?) está ligado diretamente com a especiação. Hoje entendemos quatro modelos pelos quais ela pode ocorrer. Na Alopatria, proposta por Mayr, uma espécie ocupa uma área, porém, é isolada em populações que então se diferenciam genética e morfologicamente. A Peripatria é semelhante à alopatria no sentido que exige que uma população da espécie se isole geograficamente, porém, o isolado periférico é muito menor que a população original. Como o leitor deve ter percebido a Peripatria se aproxima muito do Equilíbrio Pontuado, as principais diferenças entre a Alopatria de Mayr e o Equilíbrio Pontuado são a velocidade com que as mudanças ocorrem e as falhas do registro fóssil, o qual, para Mayr explicava a ausência das formas transicionais(Futuyma 2002).
As outras duas formas de especiação são a Simpatria e a Parapatria. Na Simpatria,  mudanças genéticas (e graduais) levam ao isolamento genético de parte da população e consequentemente ao surgimento de nova espécie. É um modelo problemático no sentido de haver poucas evidências, alguns apresentam dúvidas se ele realmente ocorreria (Fitzpatrick, et al, 2008). Por fim, a Parapatria, duas populações de uma espécie, que ocupam áreas próximas, mas que não se sobrepõem, desenvolvem isolamento genético enquanto a troca genética ocorre, dado a seleção de parceiros e um fluxo genético desigual. Um exemplo claro de Parapatria seriam as espécies anel, onde as populações que habitam as fronteiras das áreas de distribuição conseguiriam realizar a troca genética, mas a compatibilidade diminui à medida que se afasta da área de contato (Futuyma 2002).

Figura 4: Esquema dos quatro tipos de especiação: Alopatria, Peripatria, Parapatria e Simpatria.


Portanto, podemos assumir que o Equilíbrio Pontuado agiria em especiações alopátricas e peripátricas, se levarmos em conta a velocidade (em termos geológicos) do período de estabilidade e mudança.
Confesso que não é um assunto fácil, ainda mais dentro de um campo altamente teórico e dependente de modelos como a especiação. Mas para identificar o Equilíbrio Pontuado devemos buscar três coisas: i) isolamento geográfico de uma população periférica da espécie; ii) período geológico longo de estabilidade (nenhum mudança acontece ou é fixada); iii) evento desencadeia rápida mudança (em termos geológicos) e seleção dos indivíduos resultando em nova espécies.
A teoria de Gould permanece controversa, e não era esperado menos do padrinho dos Underdogs da ciência. Vários dos ensaios de Gould tratam de resgatar e tentar redimir cientistas que no passado ousaram questionar ou pensar fora da caixa da ciência da época. Em “O pônei do Senhor Sophia”, Gould vem em defesa de Vladimir Kovalevsky, marido de Sophia Kovalevsky ( a mulher mais importante para a matemática do século XX) e sua hipótese para a origem e ancestralidade dos cavalos atuais estarem ligada com os fósseis encontrados na Europa. Hoje sabemos que esta hipótese está errada. Vladimir desconsiderou os fósseis norte-americanos -os cavalos surgiram na América do Norte- e os fósseis europeus representam linhagens extintas sem descendentes. Mas, argumenta Gould:

“Se uma afirmação não pode ser refutada, não pertence ao empreendimento da ciência. Um campo novo (como era o caso da paleontologia evolucionista no tempo de Kovalevsky) que trabalha com dados imperfeitos (o registro fóssil) apresenta-se especialmente sujeita a erros – e os bravos cientistas devem dar melhor de si e assumir os riscos das consequências, confiantes de que a retificação de um equívoco (por mais embaraçoso que seja, do ponto de vista pessoal, para aquele que o perpetra) produz tanto esclarecimento quanto uma descoberta legítima” (Gould 2003), pag. 190).


Em “O Velho Louco Randolph Kirckpatrick”, Gould apresenta a teoria da Numolosfera, a ideia de que toda a Terra (e até mesmo meteoros) era formada pela acresção das conchas de Numulites. Kirckpatrick não é apresentado como um louco, mas como um ousado cientista, Gould em momento algum defende a possibilidade de que a Numolosfera seja verdadeira, mas coloca que “cientistas como Kirckpatrick pagam um preço elevado, porque geralmente estão errados. Mas, quando tem razão, podem estar tão visivelmente certos que suas ideias depreciam o trabalho honesto de muitas vidas cientificas nos canais convencionais(Gould 2004, pag 208). A ideia de Gould era clara, cientistas devem ser ousados e corajosos, devem estar dispostos a arriscar. Ele mesmo se arriscou ao afirmar que o gradualismo de Darwin estava errado. E como alguém ousa elevar-se contra Darwin, certo? Mas o próprio Huxley já havia alertado Darwin sobre isso: “você arcou com uma dificuldade desnecessária ao adotar tão sem reservas o princípio ‘Natura non facit saltum’” (Huxley 1859). Para Huxley, conforme ele expressa no restante do parágrafo, pequenos saltos ocorriam.
No dia de hoje a 15 anos atrás Stephen J. Gould falecia “em sua casa, em uma cama colocada na biblioteca de seu loft Soho, cercado por sua esposa Rhonda, sua mãe Eleanor, e os muitos livros que ele tanto amou” (Krementz 2002). Há 15 anos nessa mesma data eu iniciava meu primeiro semestre em Ciências Biológicas. Por esse motivo, nunca tive a mesma chance de conhecer Gould como pude conhecer Bakker. Encontro-me com ele, no entanto, sempre que leio seus ensaios ou artigos. E volta e meia acabo lamentando a impossibilidade de ter trocado um aperto de mão dele com algum amigo da área. Foi somente ao ler Wonderful Life que consegui, em partes, superar isso. Como um bom cientista, essa explicação vai demandar alguns passos.
O primeiro é retomarmos o exemplo do gradualismo que dei no início do texto. Se todos ancestrais e descendentes estivessem vivos e dando as mãos, teríamos uma corrente de uma única espécie. Quero me focar mais no aspecto de ancestrais e descendentes dando as mãos. Em Wonderful Life, Gould relata para minha surpresa que Robert Bakker foi um de seus alunos. Ao passo que posso inferir que em algum momento ambos trocaram um caloroso aperto de mãos. Oras, em seu ensaio “Um contacto com Walcot”, onde Gould se gaba de ter um cartão de visitas de Charles Darwin, ele aplica o seguinte raciocínio, quantos apertos de mão ele teria que retroceder até um aperto de mão metafórico com Darwin? A resposta são 2! Além disso, ele descreve a viagem que empreendeu para trocar um aperto de mãos com T. H. Clark e assim ficar a um aperto de mão de Walcott!
Posso me aproveitar então da ideia do aperto de mão genealógico, e do fato de ter trocado um aperto de mãos com Robert Bakker, para dizer que estou a um aperto de mão de Gould e esse contato, e saber que agora faço parte de uma genealogia intelectual que também o abrange, é mais que suficiente para mim. No fim, ele tinha razão, nada é mais precioso para os paleontólogos do que as ligações.

Referências
Barbarena, M.C., 1984. Microevolucao e Macroevolucao A Perspectiva da Paleontologia. In Anais do XXXIII Congresso Brasileiro de Geologia. Rio de Janeiro, pp. 465–477.
Dawkins, R., 1996. A escalada do monte improvável: uma defesa da teoria da evolução, Companhia das letras.
Dawkins, R., 1986. Blind Watcher,
Eldredge, N. & Gould, S.J., 1985. Punctuated Equilibria: An alternative to phyletic gradualism. In Models in Paleobiology. pp. 193–223.
Futuyma, D., 2002. Especiação. In Biologia Evolutiva. p. 620.
Gould, S.J., 2003. A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci, Companhia das letras.
Gould, S.J., 2004. O Polegar do Panda 2a., São Paulo: Martins Fontes.
Gould, S.J., 1982. Punctuated equilibrium-a different way of seeing. New Scientist, 94(1301), pp.137–141.
Gould, S.J., 1977. The return of hopeful monsters. Natural History, 86, pp.22–30. Available at: https://www.andrew.cmu.edu/user/jksadegh/A Good Atheist Secularist Skeptical Book Collection/Gould_The_Return_of_Hopeful_Monsters_sec.pdf.
Gould, S.J., 2000. Wonderful Life,
Gould, S.J. & Eldredge, N., 1977. Punctuated Equilibria : The Tempo and Mode of Evolution Reconsidered. Paleobiology, 3(2), pp.115–151.
Huxley, T.H., 1859. Darwin Correspondence Project. Available at: https://www.darwinproject.ac.uk/letter/DCP-LETT-2544.xml.
Krementz, J., 2002. Jill Krementz Photo Journal. Available at: https://web.archive.org/web/20160303190152id_/http://www.asrlab.org/archive/jillPage.htm.
Lieberman, B.S. & Eldredge, N., 2014. What is punctuated equilibrium? What is macroevolution? A response to Pennell et al. Trends in Ecology and Evolution, 29(4), pp.185–186. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.tree.2014.02.005.
Mayr, E., 1954. Change of genetic environment and evolution. In J. Huxley, ed. Evolution as a Process. london: Allen and Unwin, pp. 157–180. Available at: http://www.sevin.ru/fundecology/speciation/mayr(20).pdf.
Smith, J.M., 1983. The Genetics of Stasis and Punctuation. Ann. Rev. Genet, 17, pp.11–25.


domingo, 16 de abril de 2017

A Canção do Cretáceo



Em minhas aulas de metodologia de pesquisa, quando preciso deixar claro porque devemos testar e confrontar nossas observações com a de outros colegas pesquisadores, pois nossos sentidos, infelizmente, tende a nos enganar com frequência, costumo contar a história dos três cegos e o elefante. Tendo eles tocado cada um uma parte do animal, descreveram- o elefante como sendo um animal colunar e roliço; comprido e maleável; uma parede curva igual a um tambor. A briga irrompeu entre os cegos, pois cada um tinha certeza do que havia “visto” e não desejava abrir mão ou complementar sua visão do que era um elefante. As ciências, em especial a paleontologia, são feitas de modo parecido. Cada pesquisador observa e coleta dados, os organiza em informações e então os coloca a prova de seus pares. Quando bem feita (leia-se: testada e discutida) as visões se completam e nós temos uma ideia um pouco melhor de como se parece mais uma parte da realidade. Esta, no entanto, é uma curva que tende ao infinito e provavelmente nunca veremos o quadro completo.
Na Paleontologia lidamos com animais e plantas que não existem mais e que existiram em um contexto ambiental e geográfico que também desapareceu. Recolhemos os fósseis e as rochas onde eles são encontrados e tentamos, como os cegos, enxergar algo, mas só temos a visão parcial, quando muito fragmentada, do quê e como aquele ser se parecia ou onde viveu. Para preencher os espaços nos valemos da comparação e da máxima dita por James Hutton: O presente é a chave para o passado. Reunimos nossos fósseis quebrados e dispersos e procuramos no que existe hoje qualquer coisa que seja parecida e nos permita inferir e especular sobre como o organismo teria sido.
Em termos leigos, é um chute, mas feito com embasamento. Como tudo mais na ciência ele deve ser passível de verificação e, embora a comparação morfológica seja útil para ossos, ela deixa a desejar quando entramos em tecidos e partes que não se preservam, órgãos como pele, coração, nervos, tudo isso é perdido e somente nas melhores, mais oportunas e raras condições se preservam, as chamadas langerstätten. Depósitos fósseis com excelente grau de preservação e informação (Hozl & Simões, .
Thomas Huxley, amigo muito próximo de Darwin e um de seus mais fiéis escudeiros, já havia inferido uma proximidade entre aves e dinossauros dada a morfologia dos mesmos. Isso contrariava as reconstruções especulativas de Richard Owen, na época que aproximavam dinossauros dos lagartos e os colocavam como pesados e lentos repteis. Owen foi o criador da palavra “Dinossauro” e também o primeiro a realizar reconstituições dos mesmos em vida. Ele também cometeu o erro de considerar o polegar afiado do Iguanodon como sendo um chifre nasal, pois sua visão de répteis lerdos e quadrupedes não aceitava um animal bípede facultativo com leve manobrabilidade manual. A visão de Huxley só foi confirmada com a descoberta do famoso Archaeopteryx lithographica (Meyer, 11861) em que não apenas a estrutura osteológica aviana era evidente como a preservação das penas fazia do local onde foi achado uma langerstätte importantíssima.
Owen - ferrenho opositor de Darwin - e Huxley ainda trocariam longas discussões sobre a herança do Archaeopterix, e dinossauros ainda seriam vistos como lagartos por mais meio século, mas a introdução da sistemática cladística e mais achados fósseis colocaram à prova essa informação e hoje reconhecemos as aves como dinossauros. As semelhanças são tantas que é comum encontrar na literatura cientifica o termo “non-avian dinosaur” (dinossauro não-aviano), para se referir aos dinossauros que não são aves.
Dois outros trabalhos importantes de Huxley voltam a se unir. Sabemos agora que aves são dinossauros e que esses são um grupo-irmão dos Crocodylomorpha. Em seu trabalho de 1875, Huxley apresenta a primeira classificação com base na evolução do palato secundário dos Crocodilos, anos antes ele havia descrito e nomeado o órgão vocal único das aves: a siringe (Huxley, 1872).
A proximidade dos dinossauros não-avianos com aves e crocodilos, confirmada pela osteologia, nos permite inferir com mais segurança os detalhes que não se preservaram de seus fósseis, já que temos o suporte de dois grupos com representantes vivos que podemos observar. Assim, podemos testar nossas especulações ao traçarmos comparações com esses grupos. A esse teste nos referimos como extant phylogenetic bracket (Witmer, 1995). E podemos usar um exemplo aqui:
Qualquer estudante de ensino médio ou biologia sabe que o coração dos vertebrados é radicalmente diferente entre os agrupamentos clássicos. Peixes possuem um coração tubular com 3 câmaras com circulação unidirecional. Anfíbios possuem a divisão entre átrio e ventrículo, com dois átrios, mas apresentam mistura sanguínea no ventrículo único. Répteis apresentam uma divisão parcial dos ventrículos, mas ainda mistura sangue, sendo uma exceção os Crocodilia que possuem o coração dividido em quatro câmaras, tal quais os “vertebrados superiores”, aves e mamíferos (Hildebrand & Goslow, 2006).
Como seria o coração dos dinossauros?
O senso comum herdado de Owen nos diz que provavelmente do tipo réptil com três câmaras, apresentando mistura sanguínea. Mas sabemos hoje que dinossauros são próximos tanto de Crocodilia, quanto de aves, grupos com um coração dividido em quatro cavidades. Se aplicarmos a regra do suporte ancestral, é muito menos custoso que o ancestral comum de Crocodilos e aves já tivesse um coração com quatro cavidades e que ambos os grupos tenham herdado essa condição. Como dinossauros-não avianos é um grupo intermediário, ele recebe suporte dos grupos atuais e podemos inferir com relativa segurança que possuíam um coração com quatro cavidades.
Um leitor mais atento (e torço para que alguns dos meus alunos sejam esse leitor) pode observar que Crocodilia apresenta alguma mistura sanguínea, sendo realizada por um foramen aberto entre os dois arcos aórticos conhecido como foramen de panizza. Essa característica só ocorre em Crocodilia, estando ausente em aves e mamíferos, e é reconhecida como uma adaptação a ocupação tardia do ambiente aquático (Seymour et al., 2004), como dinossauros nunca fizeram uma transição total para o modo de vida semi-aquático ou aquático como os crocodilianos, então não há suporte para essa característica.


Figura 1: Dois exemplos de inferência positiva para estruturas não preservadas. Em A) suporte positivo ancestral para o coração com quatro cavidades em dinossauros não-avianos; em B) suporte positivo ancestral para penas em Hesperornis. Archaeopteryx pode ser usado para suporte, já que preservou as penas. (Imagens modificadas de Witmer, 1995)
Algumas questões ainda escapam desse teste de inferência a medida que ele necessita que o grupo fóssil possua grupos atuais para dar uma sustentação. Assim, a endotermia dos dinossauros ainda é debatida, já que aves são endotérmicas, enquanto que crocodilianos atuais são ectotérmicos e não temos como saber se as formas terrestres do Mesozóico eram endotérmicas ou ectotérmicas. Embora autores como Seymour et al. (2004) considerem a ectotermia dos crocodilianos atuais como uma adaptação ao modo de vida aquático (Figura 2). Outra questão debatida era a vocalização produzida pelos dinossauros.

Exemplode inferencia equivocada. Não é possível confirmar a ectotermia ou endoterma para dinossauros não-avianos (imagem modificada de Witmer, 1995).

Quando se trata da vocalização dos dinossauros somos como o cego que comparou a barriga do elefante com um tambor. Nosso senso comum dita que os predadores rugem, mas a maioria dos predadores que estamos acostumados são mamíferos como nós, com uma laringe, faringe, cordas vocais e aparato vocal semelhante ao nosso. Como a narrativa cinematográfica precisa que as pessoas tenham medo dos dinossauros, as reconstituições os fazem rugir como leões. Para os paleontólogos tentando inferir o som dos dinossauros a pergunta era diferente: dinossauros piavam, cantavam e grasnavam como aves ou emitiam sons de baixa frequência como os crocodilos?
A vocalização dos crocodilos e aves difere consideravelmente, dos primeiros é produzida pela laringe, enquanto as aves possuem um órgão único aqui já mencionado, a siringe, nomeado e descrito por Huxley (1872). A siringe é um órgão particular, relacionado à respiração de sentido único por sacos aéreos das aves. Situa-se na base da traquéia, na bifurcação dos dois brônquios, É formada por um conjunto de anéis traqueobronquiais de cartilagens mineralizados unidos a anéis de músculos (Figura 3). Esse conjunto é sustentado por um par de membranas situadas na base de cada brônquio. Pássaros canoros possuem entre cinco a nove pares de músculos siringeais, psitacideos em torno de três pares, enquanto falconiformes possuem dois pares. O restante das aves em sua maioria possui apenas um par. Já urubus, cegonhas e ratitas (avestruzes e outras aves que não voam) não possuem músculos siringeais (Pough et al., 2003; Hildebrand & Goslow, 2006; Clarke et al, 2016).

Figura 3: Desenho esquemático da siringe. 1: ultimo anel traqueal cartilaginoso livre, 2: tympanum, 3: primeiro grupo de anéis siringeais, 4: pessulus, 5: membrana tympaniformis lateralis, 6: membrana tympaniformis medialis, 7: segundo grupo de anéis siringeais,  8: brônquio principal, 9: cartilagem bronquial.

Portanto, sabemos que as aves mais basais, as ratitas, (Grealy et al, 2017) possuem uma siringe muito simples. Não sabemos, no entanto, se dinossauros já possuíam esse órgão e nesse caso o suporte ancestral não parece nos ajudar, já que Crocodilia não possui siringe. Para responder a questão primeiro precisamos saber quando a siringe surgiu, sendo um órgão composto de tecidos moles as chances de preservação são pequenas. Porém, no final do ano passado Clarke et al (2016) descreveram a primeira siringe fossilizada para a ave fóssil batizada de Vegavis iaai Clarke et al 2005 (Figura 4).

Figura 4: A siringe do Vegavis iaai vistos por tomografia computadorizada (Clarke et al., 2016). Os número I-IX indicam os anéis de cartilagem mineralizados.

O pequeno ganso do Cretáceo Superior trouxe repercussões na mídia que rapidamente divulgou a descoberta como a interpretação final de como os dinossauros vocalizavam. Abundaram vídeos dos animais de Jurassic Park dublados por patos e gansos. Embora seja hilário imaginar  um Tryannosaurus grasnando, algo que os autores não afirmam em momento algum do artigo, a conclusão deles se apresenta bem conservadora. Embora a descrição de uma siringe complexa com nove elementos mostre que o órgão atingiu uma complexidade rápida dentro de aves, ela ainda só ocorre em aves! E eles não poderiam ter deixado mais didático no cladograma que apresentaram (Figura 5).

Figura 5: Cladograma indicando os nós e os passos de surgimento da siringe. Observe que o Clado Archosauria ´(Crocodilos + Dinossauros) é sustentado pelo aparecimento de aneis pouco ou nada mineralizados. Enquanto que o Clado Aves ocorre o aparecimento de anéis mineralizados marcadno o surgimento da siringe. Ao lado o esquema mostra as diferenças de aparelho vocal de um Crocodiliano e de uma Aven.


No cladograma são comparados Crocodilia, representados por Alligator mississipiensis, e Aves representadas por Palaeognathae (Ratitas) e Neognathae, basicamente todas as outras aves existentes. As únicas espécies extintas são Presbyornis e Vegavis. O surgimento da siringe marca o inicio de Aves, temos então diferenciação e mineralização dos anéis traqueobronquiais e origem da musculatura que alterna a tensão das membranas e aberturas bronquiais. Essa é a condição dos Palaeognathae. Qualquer um que já ouviu os tum tum tum produzidos por um avestruz ou ema, agora vai saber que isso se deve a falta do pessulus, uma estrutura ossificada e robusta localizada na linha média da passagem de ar dos brônquios onde membranas vocais se prendem. Vegavis e todos os Neognathae possuem um pessulus.
O cladograma sabiamente omite dinossauros não-avianos. Mas se tentássemos o extant phylogenetic bracket para onde eles penderiam? Provavelmente para o lado dos Crocodilia. Clarke et al (2016) colocam de maneira bem clara, a fossilização de uma siringe depende da mineralização dos anéis traqueobronquiais. Quando a mineralização é inexistente, como ocorre em Crocodilia, a preservação não ocorre. A ausência de preservação dessas estruturas em dinossauros não-avianos seria pelo mesmo motivo dos Crocodilianos: eles não possuíam anéis traqueobronquiais mineralizados (Figura 6). Como os anéis mineralizados são uma das exigências para a siringe, dinossauros não as teriam, desse modo precisamos olhar para outras hipóteses tais como a vocalização laringeal dos crocodilianos, câmaras de ressonância como  ocorriam em alguns grupos como o Parasaurolophus ou até a mais triste de todas: eles serem mudos (Wheishampel, 1981; Evans, 2006, Senter, 2008). Teríamos então, até o surgimento da siringe no Cretáceo, a maior parte do Mesozoico dominada por coachar de rãs, barulhos de insetos e o ribombar dos crocodilianos. Mas os gigantes dominantes dessa época passariam silenciosos. Regentes mudos contemplando em silêncio seu reino. Por sorte, seus fósseis são bem tagarelas.

Figura 6: Teste da presença de siringe em dinossauros não-avianos através do extant phylogenetic bracket. A inferencia é equivocada e negativa. Como apenas aves apresentam siringe não ocorre o suporte ancestral.




REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS



CLARKE, J. A., et al. 2016. Fossil evidence of the avian vocal organ from the Mesozoic. Nature. 538, 502–505
EVANS, D. C. 2006. Nasal cavity homologies and cranial crest function in lambeosaurine dinosaurs. Paleobiology 32, 109–125.

GREALY, A., ET AL. 2017. Eggshell palaeogenomics: Palaeognath evolutionary history revealed through ancient nuclear and mitochondrial DNA from Madagascan elephant bird (Aepyornis sp.) eggshell. Molecular Phylogenetics and Evolution.

HILDEBRAND, M.; GOSLOW, G. Análise da estrutura dos vertebrados, 2a edição, São Paulo: Atheneo Editora, 2006.
 

HOLZ, M.; SIMÕES, M. G. 2002. Elementos fundamentais de tafonomia. Ed. Universidade.

HUXLEY, T. H. 1872. A Manual of the Anatomy of Vertebrate Animals. Appleton.



HUXLEY, T. H. 1875. On Stagonolepsis robertoni, and on the evolution of the Crocodylia. L. L. D., Sec. R. S. F. G. S. 423-438.
  


POUGH, F. H.; HEISER, J. B.; McFARLAND, W. N. 1993. A vida dos vertebrados. São Paulo: Atheneu, 754 p.
  
SENTER, P. 2008. Voices of the past: a review of Paleozoic and Mesozoic animal sounds. Hist. Biol. 20, 255–287.

WEISHAMPEL, D. B. 1981. Acoustic analyses of potential vocalization in lambeosaurine dinosaurs (Reptilia: Ornithischia). Paleobiology 7, 252–261.

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